quarta-feira, 24 de outubro de 2012

O Nascimento do Diabo - por Júlia Signer


Este texto abordará a idéia de como surgiu a idéia de diabo na religião cristã.


Para tal, iniciaremos observando as crenças da religião que deu início ao cristianismo,

o judaísmo; como também as crenças de outras religiões maiores, como o

islamismo, ou menores, como as tradições pagãs, que alimentaram os cristãos com

idéias demoníacas. Traçaremos a trajetória desse imaginário até os dias de hoje. A

abordagem do texto terá caráter psicológico, focando como as crenças adotadas

levaram a ação externa executada.

Na tradição hebraica primitiva, havia a percepção de Deus como sendo onipotente

e onipresente, não havia dúvida que ele reinava sobre todas as coisas. A ele

cabia tudo o que acontecia aos seres humanos, ninguém lhe era superior. “Quem

entre os deuses é como tu, Senhor? Quem como tu, magnífico na santidade, terrível

nas proezas, autor de prodígios?” (Ex 15,11). A idéia de Deus alimentada por esses

hebreus era uma força que abarcava o bem e o mal.

Nessa percepção, a idéia de o ser humano ser uma imagem de Deus o coloca

em uma posição integral. Ele próprio, ser humano, é capaz de sentir coisas boas e

ruins, em si mesmo contém luz e sombra. Assim, o ser humano é igual a todos os

outros seres humanos e o responsável por tudo é Deus.

Na tradição hebraica, existiam

rouch raha, espíritos malignos enviados por Deus

como punição. Os eventos negativos na vida humana eram vistos como castigos divinos,

assim como os eventos benignos, as bênçãos. Tanto anjos como demônios eram

seres incorpóreos criados por Deus que apenas executavam-lhe a vontade. Eram vistos

como manifestações divinas, a bondade ou a ira de Deus, um desdobramento do próprio

Deus, não havia autonomia dessas formas, elas serviam a Deus.

A imagem de Satã no Antigo Testamento, pós-exílio, é a daquele que intercepta

o caminho, ou daquele que acusa, ou daquele que tenta o ser humano

para violar as ordens de Deus. O demônio, em si, não é mal, ele se aproxima

mais dos

rouch raha.

Sua presença mais enigmática pode ser vista em Jó, quando desafia Deus a testar

Jó. Aqui, nitidamente está ocupando o mesmo ambiente de Deus e conversam

entre si. Mais, Deus apóia o teste e o executa. Não existe uma distância entre a

vontade de Deus e a vontade do diabo, parecem “compadres”.

Não se pode afirmar que no Antigo Testamento existam dois reinos, o divino e o

diabólico, tudo faz parte da criação de Deus. “Todos os deuses das nações são um

nada, mas o Senhor fez os céus” (Sl 95,5). Mesmo existindo outros reinos, Deus é

soberano a tudo e tudo criou.




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Durante e após o cativeiro da Babilônia, os judeus entram em contato com os

persas. A doutrina de Zoroastro baseava-se em permanente conflito dos princípios

gêmeos do Bem e do Mal. Interminável briga dos

spenta, que representam virtudes.

E os

dâevas, deuses tradicionais da religião iraniana, as forças demoníacas.

Os persas trazem aos judeus a idéia de duas forças co-existentes, o bem e o mal.

Essa percepção antes não havia, tudo era Deus. Agora não, a um núcleo bom, destinado

ao Senhor, e um núcleo malévolo, destinado a Satã. Na passagem citada do

Sl 95, já é apontado quem será Satã: os deuses de outros povos. Isso foi concebido

da seguinte forma: como há de haver um bom e um mau, nós somos os bons. E eles,

que nos são inimigos, sãos os maus, simples lógica humana.

Dessa forma, criou-se o paganismo, aquilo que não é cristão. Nesse momento

histórico já nasceu o cristianismo, e não me preocuparei mais com os judeus, que

até hoje têm a idéia de um Deus onipotente e onipresente, que pela cabala respeitam

a índole boa ou má humana e acreditam que tudo é fruto divino.

Chegando ao cristianismo, com ele foi criado o paganismo, ou seja: aquilo que

não é cristão. Havia de ter os representantes do mal, então foi eleito um dos principais

deuses de tradições mágicas, o Deus Cornudo. Essa imagem de um diabo com

chifres enrolados e pé de bode até hoje é presente, e não é ninguém menos que Pã,

o Deus das alegrias e da fertilidade. Outros deuses também assumiram o papel de

demônio, como Ishtar, a deusa lunar cultuada na Mesopotâmia, que se transformou

em Astoroth, um demônio. Ou Belzebu, o deus filisteu de Ekron Baal-Zeboub, assimilado

como príncipe dos demônios. Asmodeu, divindade persa da tempestade,

que apresenta, na lenda talmúdica de Salomão, o papel de rei dos demônios e, sem

apresentar caráter maligno, converte-se em demônio da lascívia.

O chefe-mor dos demônios, porque nesse momento já há toda uma hierarquia

e dois reinos muito bem divididos, o do céu, pertencente a Deus, e o da terra, pertencente

ao demo. Seu líder é Lúcifer, o ser de luz, ironicamente. Há muitas lendas

de Lúcifer. A mais popular diz que era um anjo, o mais belo de todos. Por causa

de seu orgulho descomunal, desejou colocar seu trono acima do trono de Deus, a

quem provocou a ira. Deus, então, enviou Lúcifer ao inferno, que seria a terra, para

reinar lá.

A idéia da existência desses seres malévolos independentes se torna assentada

pelo testamento dos doze patriarcas (109-106 a.C.), no qual aparece a personificação

da figura do demônio: Belial, chefe dos anjos caídos, coloca-se como adversário

e rival de Deus e disputa a soberania com os humanos, incitando os seres

humanos à inveja, ao ciúme, à cólera, ao assassinato e, principalmente, à idolatria,

ou seja: à adoração de deuses estrangeiros: “Tu escolherás as trevas ou à luz, a lei

do Senhor ou as obras de Belial?” (Testamento de Levi 19:1).

Há a incorporação de todos os deuses das outras tradições, como inferiores

ao Deus Supremo e muitas vezes como demônios. A palavra

daimôn aparece em

Platão e sua escola para designar seres enviados por Deus para trazer bênçãos ou

desgraças. A palavra em si não é negativa, mas assumiu esse caráter com o tempo.

Por volta do século II, há a tradução para o grego de livros sagrados sobre demônios

e divindades pagãs e animais fantásticos, com isso a noção de inferno e céu

vira algo concreto. 

Não importa como, sempre há a necessidade do equilíbrio, e o comportamento

humano será um produto de como o ser humano percebe e localiza as forças do

bem e do mal.


Bibliografia


NOGUEIRA, Carlos Roberto.

O diabo no imaginário cristão. Bauru: Edusc, 2002.
SANFORD, John A. Mal: o lado sombrio da realidade. São Paulo: Paulus, 1988.

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